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Van Grogue não era calçada portuguesa, aquela obra de arte feita para ser pisada, mas a população de Tupinambicas das Linhas cria que para ser feliz deveria melindrá-lo sempre.
Essa mania, de calcar o bêbado, nascera com a vovó Bim Latem a chefe de gabinete do prefeito Jarbas, o caquético testudo, espalhando-se ao longo do tempo e pela cidade toda.
Eu já lhes contei inúmeras passagens sobre a tal vovô Bim Latem. Ela era fã de Herivelto Martins e Dalva de Oliveira; quando entrou para o funcionalismo público – onde trabalhou durante cinco anos e já está aposentada há cinquenta -, comprou com o primeiro salário que recebeu toda a discografia dos artistas.
Por ter o Van Grogue uma desavença com Luisa Fernanda, Célio Justinho que envolveu também o prefeito Jarbas, o vereador Fuinho Bigodudo e o deputado Tendes Trame, a vovó Bim Latem desejou, com todas as suas forças morais, poderio econômico e tráfico de influência, que o tal pingueiro fosse morar numa barrica a ser instalada em qualquer rua da cidade.
Numa das reuniões que aconteceram ao redor da piscina de Luisa Fernanda e Célio Justinho, onde também faziam churrasco e ensaiavam as apresentações da Banda Funileiros do Havaí, a vovó teria dito sobre o futuro do Van de Oliveira:
- Vai morar na rua entre os cães; de lá “meterá o pau” em nós e em nossas obras administrativas. Quando ouvir um sino sentirá vontade de perambular pelas vias, becos e vielas. Esse catinguento terá muita sorte se alguém se compadecer dele e o tirar da sarjeta.
Apesar de todo esse sortilégio lançado contra Van de Oliveira, a justiça agiu antes, tendo descoberto falcatruas imensas nas licitações da prefeitura tupinambiquense.
Jarbas, sua mulher, Fuinho Bigodudo e até mesmo Tendes Trame, tiveram de explicar como conseguiram tamanho acúmulo de bens móveis e imóveis, com os salários modestos que recebiam.
Para muitos a carreira política desses senhores havia chegado ao fim.
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O Ensaio
Tupinambicas das Linhas estava praticamente isolada dentro da conjuntura nacional. No dizer do Chuma, considerado o mais chato do pedaço, que ganhava todas de todos, seus moradores viviam mais por fora do que antena de tevê.
Ele chegou, numa certa ocasião a escrever um artigo pro Diário de Tupinambicas das Linhas dizendo "Os cidadãos têm os dois lados da consciência humana (o que se refere a si mesmo, e o que se volta para fora) em estado de letargia e semidespertos. O véu é feito com superstição e preconceito.
As pessoas aqui viventes nunca se dão conta de si mesmas como membros duma raça, povo, partido, família ou instituição".
É desnecessário dizer que o jornal, por meio do seu redator chefe, o doutor Magino, negou-se a publicar o artiguete, afirmando tratar-se de artiguelho pejorativo.
Chuma, por suas ideais e opiniões, era considerado, nas rodas de café, como um sujeito "mental". Assim, quando a turma via que ele vinha vindo logo diziam: "Ih, muda o assunto, que lá vem o mental".
Mas a turma não deixava de ter uma certa dose de razão. Quando entrava em pane, Chuma confundia bruma com Bruna, depauperado com de pau operado e, má cabra com macabra.
Quando estava nesse estado de confusão, ele encontrava dificuldades até pra chegar à Rua da Greve, na vila Dependência, local onde morava.
Quando, porém, ele dizia que ideias novas em cabeças velhas, não davam mesmo certo, era batata! Podiam conferir que ele estava certo.
Os mais velhos, do povoado, tinham receio de que o Chuma ao dizer o que dizia, provocava terremotos, incêndios, maremotos, sequestros, roubos, homicídios e até rebeliões nas cadeias.
Se aquelas ocorrências funestas seriam reações ao seu comportamento verbal, era verdadeiro ou não, isso improcedia. Entretanto a turma, por insinuações, sempre botava a culpa nele.
Um dia, durante uma tarde modorrenta, na praça central, conversávamos sobre a mais profunda filosofia, sob a sombra do monumento aos mortos Tupinambiquenses na revolução de 32, quando passou por nós uma quarentona, boazuda ainda, e que murmurava: "Justiça! Justiça! Justiça!"
A primeira ideia que nos veio foi a de que era a ex-amiga do Mingo, deixada por ele, após ter percebido ser a figura, baixinha e briguenta, complexa demais pro seu entendimento.
Chuma e eu nos entreolhamos. Depois de alguns segundos, quando terminou a análise da situação, definiu-a: "Justiça nada.
O que ela diz é linguiça, objeto evocativo dum falo enorme, que está querendo".
Falar o quê pra ele? Ele era o Chuma, meu amigo. E fim de papo.
Mudando de Assunto:
Quem não se lembra do velho Aero Willys?
Estaria equivocado quem dissesse que ele fazia muito barulho e tinha um desempenho sofrível?
Veja o vídeo:
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Van Grogue trajando camiseta regata azul, short marrom e chinelos verdes, entrou no bar do Bafão naquela manhã de sábado, com a intenção de matar a sede e passar algumas horas agradáveis na companhia de gente boa.
Já tinham chegado Gelino Embrulhano, Zé Cíliodemorais, Billy Rubina e Célio Justinho, que falavam sobre a possibilidade de ser o E.C. 7,5 de Novembro, o campeão do torneio estadual de futebol, que iniciaria em 2012.
Grogue tinha passado a noite jogando cartas na casa de um vizinho do Fuinho Bigodudo e não podendo desviar eficientemente da mesa de bilhar, postada no centro do salão, deu uma topada no móvel que quase lhe arrancou a unha do artelho do pé direito.
Gemendo e se contorcendo de dor, Van aproximou-se dos colegas que, boquiabertos com a cena, cessaram a conversa.
- Pô Bafão, bem no meio da passagem você deixa esse trambolho? – indagou, choramingando, o Van de Oliveira.
- Qual é? Está cego ou o quê? – respondeu indignado o dono do boteco.
- Todo mundo desvia, só você não percebeu o tamanho da coisa. – comentou Célio Justinho.
Billy Rubina pousando o copo de cerveja sobre o balcão abaixou-se observando mais de perto a região do choque. Depois comentou:
- Não foi nada. Não arrancou a unha e nem fraturou o dedo. Mas você é burro mesmo hein, seu Van Grogue?
- Que mané burro, mano? Não vi essa porcaria no meio do caminho. – defendeu-se Van.
- Está bêbado? Já chegou encharcado pro expediente? - Quis saber o Zé Cíliodemorais.
Sem dar atenção às reclamações Van Grogue, com um gesto, fez vir para si o costumeiro copo de cachaça e a cerveja bem gelada.
Como se sentia entristecido, o pingueiro mais conhecido de Tupinambicas das Linhas desistiu de conversar com a galera, acomodando-se a uma mesa, num canto distante, perto da porta.
O fluxo da conversa dos colegas voltara ao normal e Grogue então, tomado por uma espécie de transe, sentiu que imagens e sons fantasmagóricos envolviam-no distanciando-o do boteco.
O menino, de mãos dadas com a mãe caminhava pela rua principal da cidade. Ele vestia uma camisa branca nova, seu short azul marinho tinha bolsos nas laterais e as sandálias de couro, com fivelas metálicas, proporcionavam-lhe prazer ao andar. Na lancheira, que trazia no ombro direito, havia uma garrafinha de leite com café e um filão recheado com queijo.
Mãe e filho pararam defronte ao portão de ferro, cuja pintura cinzenta demonstrava desgaste. Ante o olhar espantado e curioso da criança, a mãe lhe sussurrou:
- É o jardim da infância. No ano que vem você vai para o curso primário.
Atendendo ao toque na campainha a mulher, de meia idade, cabelos esbranquiçados e um sorriso amistoso nos lábios, veio receber o seu mais novo educando.
O menino foi introduzido numa sala onde já estavam outras crianças sentadas em círculo, no chão. Elas usavam lápis de cera para produzir traços e formas coloridas nos papéis soltos, que depois de preenchidos, eram guardados nas pastas individuais.
O garotinho não trouxera nenhum material que possibilitasse sua atividade junto ao grupo. Entretanto a professora, buscando num armário distante, duas folhas de papel e alguns lápis, fez com que o recém-chegado se juntasse aos outros.
A tarde ia passando e o novato não podia esconder a atração que lhe provocava a menina rochonchuda, de cabelos castanhos lisos e longos, que mantinham no lado esquerdo, lá no alto, um lacinho branco de seda.
Por onde Ângela andasse Van de Oliveira ia atrás. E quando ela percebia que aquele chato se aproximava, logo demonstrava seu desprazer queixando-se com a professora.
Van pôde ouvir o comentário da mestra com uma assistente sua, sobre o comportamento do menino.
- Ele não fala muito. E veja que tenta se aproximar da garota.
- É, mas ela não quer nem saber... – respondeu a auxiliar.
Numa tarde, quando a professora estendia as esteiras num dos aposentos, onde as crianças repousariam, Grogue vendo que Ângela se acomodou numa delas, deitou-se na do lado.
O menino sentiu-se muito mal quando a amada, resmungando, se afastou dele.
Vexado ele não tinha forças nem pra se levantar.
- Acorda! Ô pingueiro do inferno! No chão do boteco é lugar pra dormir? – Era Bafão que, sacudindo o ombro direito do Van, tirava-o de um coma alcoólico.
Mudando de assunto:
Relembre um dos sucessos de Ângela Maria, a renomada cantora brasileira. Ouça-a cantando Babalu.
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Parado na esquina, com o cacete na mão, Donizete Pimenta esperava por alguém que viesse atacá-lo.
Na verdade o moço delirante, por sentir-se ameaçado, mantinha-se em posição de defesa.
Quem passava pela rua via aquela figura grotesca, primitiva, de short bege, sem camisa, descalço, com o tacape em riste, pronto para o combate imaginário.
Diziam no quarteirão que o amalucado tinha ascendência chilena e que viera para Tupinambicas das Linhas fugido da polícia. Segundo comentários, no bar do Maçarico, Donizete envolvera-se com o sequestro de um velho carteiro.
Os vizinhos notaram que o doidinho tinha o hábito de sair de casa sempre acompanhado de uma jovem morena, de cabelos pretos e longos, caminhar rapidamente pelas ruas, e de não falar com ninguém.
No boteco, Maçarico já demonstrara a sua desconfiança ao conversar com a figura, que entrara numa ocasião, para comprar cigarros.
Num domingo de manhã quando Van Grogue, Zé Cílio Demorais e Billy Rubina bebiam tranquilamente, comentaram as impressões causadas pelo novo e misterioso vizinho, que passara naquele momento, ligeiro assim, feito uma sombra, pela porta do bar.
- Dizem que é muito rico. A mulher deve ter umas oito casas. Com escritura e tudo. – disse Van de Oliveira ao notar a dupla que caminhava.
- Eles não têm filhos. – emendou Zé Cílio.
- Eu ouvi dizer que eles têm filhos de outras uniões. Se não me engano são quatro menores.
- Ninguém nunca viu esses dois com guris, zanzando de lá pra cá. – contribuiu Maçarico.
- Talvez fiquem escondidos dentro da casa. – arriscou Van Grogue.
- Será? – questionou Zé Cílio.
- Eu não acredito que esse bagre cabeçudo tenha capacidade pra fazer isso. – desafiou Maçarico.
- Olha, não duvide. Tem louco pra tudo. Pelo jeito que esse pé-rachado age, não duvide que ele seja capaz de gerar filhos com a própria filha. – garantiu Billy.
- Pra mim esse retardado mental quer fazer bonito pra impressionar a mocréia miserável que caiu na rede dele. – concluiu Maçarico.
Agora ali, parado na esquina, com a borduna na mão, à espera do inimigo imaginário, Donizete assustado, com o coração a galope, viu a polícia que chegava.
Ao ser detido ele confessou que mantinha uma das crianças presas num cubículo, construído dentro de um dos quartos da casa, feita lá no fundo do quintal; e que a sujeitara, para aprender, a ouvir diuturnamente, centenas de músicas sertanejas.
Depois das primeiras providências, tomadas no inquérito policial, o delegado determinou que Donizete Pimenta fosse levado ao sanatório psiquiátrico do doutor Silly Kone, onde recebeu o tratamento especializado.
24/10/11
Tupinambicas das Linhas não era uma cidade agradável. Essa conclusão antiga baseava-se no fato de que a maioria das edificações civis foi construída sobre pântanos.
As emanações gasosas pútridas foram observadas pelos primeiros colonizadores, mas insuficientemente desagradáveis para os convencerem de que o lado do rio, onde ergueram as primeiras construções, não era o mais saudável.
Os gases fétidos, resultados da podridão fermentada no subsolo, emergiam a todo o momento, tornando insalubres alguns locais específicos da urbe. Esse desconforto era intensificado quando não havia ventos e o calor tornava-se desprazível.
Jarbas o prefeito caquético e testudo, fora comunicado, há muito, sobre a existência dessa malignidade, entretanto ele afirmava que não podia fazer praticamente nada a não ser instalar dutos que facilitassem a vazão das exalações. O assunto ocupava boa parte dos espaços na mídia e das conversas dos moradores dos locais mais prejudicados.
Foi nesse clima que, naquela manhã de quarta-feira, Van de Oliveira Grogue adentrou o bar do Maçarico cantarolando:
- Litrão ê, ô... Litrão ê, ô...
Maçarico lia o Diário de Tupinambicas, que aberto sobre o balcão, noticiava uma blitz dos agentes da polícia, na prefeitura.
- Minha pinga! – exclamou Van de Oliveira notando o desprazer que provocava no Maçarico ao interromper sua leitura.
- Você viu o que descobriram na prefeitura? – perguntou o dono do boteco, enquanto enchia rapidamente o copo do cliente.
- Sempre tem maracutaia nova. Qual foi dessa vez? - questionou Van, depois de emborcar a “branquinha”.
- Prenderam um grupo de funcionários que simplesmente apagava dos computadores da Dívida Ativa, os débitos dos devedores de impostos que se propusessem a pagar 30% dos valores. E parece que o Jarbas sabia de tudo. Diziam que ele recebia alguma comissão.
- Eu ouvi essa notícia pelo rádio, no começo da madrugada. Levaram os computadores, e cinco suspeitos. – confirmou Van de Oliveira.
- Descobriram que o esquema de sumiço dos dados era feito há muito tempo. Desviaram milhões e milhões de reais da prefeitura. O prejuízo é bem grande. – completou Maçarico.
- Isso explica o carro novo que o Mariel Pentelini Demorais comprou de uma hora pra outra. – concluiu Van de Oliveira.
Atendendo a um gesto do bebedor, Maçarico abriu uma cerveja postando-a sobre o balcão.
– O cara não tinha nada, mas depois que passou a trabalhar na prefeitura, deixou o bigode crescer e comprou até apartamento no centro da cidade. – continuou Grogue.
- O Mariel Pentelini não é aquele mocorongo entrevado que tinha uma serralheria, falida logo depois da morte do pai dele? – quis saber o Maçarico.
- É esse mesmo. Eu o conheço desde criança. Na casa em que os pais dele moravam havia um limoeiro, uma pitangueira, um orquidário feito com bambus e, bem defronte a porta da cozinha, um gramado pequeno. Naquela casa, antes dos pais do Mariel mudarem pra lá, funcionou uma lavanderia. Isso explicava a existência de quatro tanques enormes num dos lados da morada. Perto dos tanques tinha um aposento com uma janela pequena e a porta bem rústica. Ali o pai do Mariel depositava pneus usados e até material de campanha política.
- Não era naquela casa que funcionou um asilo de insensatos? – indagou o dono do boteco.
- Isso eu não sei. Mas naquele tempo na sala havia cristaleira, mesa e cadeiras no estilo colonial, quadros nas paredes e o ambiente todo era bem agradável.
- Que eu saiba esse Mariel Pentelini vive de bar em bar curtindo as “canas” que entorna e cofiando o bigode branco. Ele não estava aposentado? – inquiriu Maçarico.
- Nada. Juntou-se com a “virgem dos lábios de mel” da Vila Dependência e toca o trole até hoje. – garantiu Van de Oliveira.
- Fazer o que, não é? Temos de ter paciência, muita paciência. – garantiu Maçarico.
Dando-se por satisfeito e finalizando o encontro, Van de Oliveira perorou:
- Por falar nisso, Maça, anota pra mim essa continha, que logo no fim do mês eu passo pra acertar. Tudo bem?
06/10/2011
Tupinambicas das Linhas não era a Líbia, mas também tinha o seu Muammar Kadaffi. Era o vereador Fuinho Bigodudo, conhecido como Muar Fuinho Bigodudo.
Da mesma forma que o ditador líbio insistia em não deixar o poder, mantido com injustiças e violência, o Muar Tupinambiquense também se negava a “largar o osso”, mantido com verbas substanciosas, aos comunicadores dependentes da cidade.
Mas na manhã de domingo, no bar do Maçarico, quando já degustava a cerveja gelada, com a barriga encostada no balcão, Gelino Embrulhano pôde notar a presença espalhafatosa do Omar Dadde que vestindo bombacha, chapéu de abas largas, bota de cano longo, camisa azul pavão e um lenço de cetim amarelo, amarrado no pescoço, entrou em cena declarando:
- Eu vou/Eu vou/Pra casa agora eu vou... – Dadde mal terminou sua mensagem matinal quando foi interrompido por Gelino Embrulhano, que falou ao Maçarico, em alto e bom som:
- Pronto! Acabou o sossego! O chato acaba de chegar.
- Mas, olha... Veja quem está aqui. É o sujeito mais mentiroso, enrolado e falso que a cidade já viu. – respondeu Omar Dadde, olhando irônico para o Maçarico.
E depois ainda, aproveitando o silêncio que se fez, por alguns segundos no botequim, Dadde continuou:
- Que mané chato, mano? Parece que não me conhece.
Gelino Embrulhano respondendo a pergunta defendeu-se:
- Onde eu estou você logo vem atrás. Parece boiolagem, tesão de argola; qual é a tua parceiro?
- O quê? Tesão de argola? Ocê tá louco Embrulhano? Eu sou é muito macho, meu chapa – indignou-se Omar Dadde. A cidade é livre, eu também sou. Por isso vou onde quero.
- A cidade pode ser livre e seus habitantes também – interviu Maçarico interrompendo a conversa entre os dois fregueses. Ele julgou que a rixa poderia descambar para a agressão física e o quebra-quebra.
- Ouvi um comentário que esse tal vereador Fuinho Bigodudo fez uma lei que proíbe o funcionamento de todos os bares e restaurantes da cidade, depois das 10 horas da noite. Ele instituiu o famoso toque de recolher.
- O quê? Ele fez isso? – perguntaram em uníssono os dois contendores.
- Fez sim. E se não me engano, o projeto de lei está no gabinete do prefeito Jarbas, pra ser aprovado – completou Maçarico, vendo que os birrentos esqueceram as hostilidades por alguns instantes.
- Isso quer dizer que ninguém mais poderá tomar seus birinaites nos bares, depois das dez horas da noite? – questionou Embrulhano.
- Mas isso é um absurdo! Vamos iniciar um abaixo assinado pedindo a cassação disse Fuinho. Ô Sujeito maldoso! Votar nele é a mesma coisa que adubar erva daninha – proclamou Omar Dadde brindando com um copo de cerveja que acabara de encher.
- Vamos depor esse Kadaffi tupinambiquense! – decretou Gelino Embrulhano.
A partir daquele momento Maçarico teve a certeza de que o bar e a sua própria integridade física, estariam assegurados.
- Olha, o que eu sei é que esse Van Grogue é meio louco, não dá pra confiar nele. – disse com firmeza o Pery Kitto jogando no chão um pouco de pinga, daquele seu segundo copo de cana, naquela manhã de sábado no bar do Maçarico.
Ernesto Mail que já bebericava a cerveja geladíssima, aproveitando a onda maledicente que se iniciava emendou:
- O cara corria atrás do pai armado com faca. Você quer o quê? As bocas de Matilde comentavam que quando esse demônio era criança xingava a mãe, porque lá na escola diziam que ele tinha a cabeça grande e era muito feio.
Maçarico ao perceber que a ventania iniciara, tirou do ombro o guardanapo branco e, alisando o balcão, na periferia do local onde os bebedores depositavam os copos, pigarreou ligando em seguida o rádio.
- Mas você não pode acreditar: no dia em que o E.C. 7,5 de Novembro ia jogar a partida do título, nós os mantenedores dessa honrosa instituição tupinambiquense, o famoso bar do Maçarico, combinamos uma caravana de torcedores do bairro que rumaria a pé, num bloco compacto, para o estádio. Pois não é que essa figura energúmena, conhecida como Van Grogue ia na frente, sozinho, enquanto que todo mundo seguia atrás? – martelou Zécílio Demorais o proprietário do Diário de Tupinambicas das Linhas.
- Não, mas ele queria dar uma de gostoso, de importante. Só porque foi jogador de futebol, achava que podia ir mais depressa que os outros. E olha que queria até indicar as ruas, o trajeto. – concluiu Pery Kitto.
- Não sei o que esse cara tem na cabeça. Ao invés de arrumar um emprego, trabalhar como todo mundo faz, fica nessa de induzir o povo contra o Jarbas. Por que não vai assentar tijolo, bater aquela massa esperta, levantar parede? – inquiriu indignado o E. Mail.
- O cara é muito folgado. Vai ocupando espaço que não é dele. Não se toca, não sabe que não é bem aceito. Não sei porque não se manda logo. – questionou Zécílio Demorais.
- Com isso que ele fazia, era como se dissesse que todo mundo aqui na cidade era burro, que ninguém era capaz de nada. Mas ora veja! – afirmou Pery Kitto, já atordoado.
- Eu não sei jogar bola. Mas não aprendi porque precisava trabalhar. Tinha que cortar cana quando era criança. Não é bem assim do jeito que esse cara pensa não. – arrematou Zécílio Demorais ingerindo o último gole de cerveja.
- Maçarico do inferno! Manda outra geladíssima pra gente ai, mano! – solicitou já um tanto quanto que embriagado o Pery Kitto.
Para o espanto geral, o dono do boteco respondeu, depois de vasculhar, com o olhar de gavião, o interior do balcão refrigerado:
- Má notícia moçada! Acabou a alegria. Findou a cerveja. Ontem a noite programei um telefonema, que faria hoje cedo, para o depósito pedindo outra remessa, mas esqueci. Não sei por que motivo não liguei, pedindo mais mercadoria. – justificou Maçarico.
A decepção baixou sobre os bebedores como a chuva gelada, repentina, desaba sobre os transeuntes desavisados.
Eles mal tiveram tempo pra deixar escapar um oh, em uníssono, das bocarras boquiabertas, quando entrou com um notebook, debaixo do braço esquerdo, o odiado Van Grogue.
- Mas o que é que você está esperando Maçarico, liga agora pra distribuidora. A gente esperamos. – pediu com carinho o E. Mail.
Rendendo-se aos clamores, e temendo perder a freguesia, Maçarico tentou ligar para a empresa fornecedora, mas depois de alguns segundos ele estancou.
- E aí? Vai ou não vai? – perguntou com ansiedade o Zécílio Demorais.
- De que jeito? Estamos sem telefone. Está mudo.
- Como assim? Você deixou acabar o estoque de cerveja justamente no sábado, véspera do primeiro jogo do E.C. 7,5 de Novembro, na primeira divisão? Mas você enlouqueceu Maçarico? Temos que interná-lo na casa transitória com a máxima urgência. Isso é questão de saúde pública. – sentenciou o iradíssimo Pery Kitto.
- E ainda por cima sem telefone. Mas é o fim do mundo! É mesmo o final dos tempos. Não dá pra acreditar. Gente! Que absurdo! – indignou-se E. Mail.
- Mas que raio de comerciante é você, Maçarico? – quis saber, com os olhos esbugalhados, o Zécilio.
- E agora? Vamos ficar assim perdidos, nesse arrabalde, sem cerveja? Não dá pra acreditar nisso. – rebelou-se E. Mail.
Observando tudo o que se passava Van de Oliveira Grogue, desconsiderando a reação de frieza, que sua presença causara, quando entrara no recinto disse:
- Com licença. Por que vocês não mandam um e-mail para a empresa, solicitando via internet, o pedido?
Maçarico, Zécilio Demorais, Pery Kitto e Ernesto Mail paralisaram-se boquiabertos. Ao se entreolharem eles ouviram o que dizia o Grogue:
- Olha, eu tenho o notebook e sei como funciona; posso enviar a mensagem. Inclusive para o mundo todo. Vocês querem?
Depois de alguns minutos angustiosos, o caminhão do depósito de bebidas encostou defronte o bar, descarregando duas vintenas de caixas de cerveja.
- Esse Van Grogue é gente fina. Eu sempre acreditei nisso. – concluiu Zécilio, agora rodeado pelos companheiros, que brindavam os bons momentos com a saborosa alegria recém-chegada.
Texto revisado.
09/08/11
Mudando de assunto:
Conheça Gigia, o homem que calou o Maracanã
Claudinho Bambini, o veadinho branquelo que cismou poder espancar o Grogue numa quizila surgida na praia artificial Tupinambiquence disse, naquela tarde, para a turma toda reunida:
- Vê se tem cabimento uma coisa dessas: o sujeito vendeu o carro que tinha e depois se arrependeu, negando-se a entregar a coisa. Esse mau senso ultrapassou os limites negando-se a devolver o dinheiro que havia recebido, por dizer que o gastara.
A rapaziada que, acomodada debaixo dos guarda-sóis, bebericava cerveja e caipirinha, folgando sob o mormaço inclemente, quase não dava atenção ao Bambini, mas mesmo assim ele prosseguia:
- Esse tal Van Grogue pensa que é muita coisa. Pois todo mundo sabe que o ordinário, tem passagens pela polícia, tendo sido detido várias vezes, inclusive por tentativa de incêndio. Pegaram essa “carniça” querendo incendiar um boteco com um coquetel molotov.
Enquanto Claudinho completava sua comunicação, ingerindo uma talagada da engasga-gato, um avião monomotor, arrastando atrás de si uma faixa publicitária com os dizeres VAI QUE DEPOIS EU VOU, passou voando baixo.
Um dos que estavam ao redor do Bambini perguntou:
- É verdade que agora todas as portas do inferno se abrem para o escrofuloso? Vai pras cucuias esse Grogue maligno?
Quase ninguém prestou muita atenção no que dissera o sujeito, primeiro porque todos estavam “pra lá de Bagdá”, impermeáveis a qualquer impressão que lhes pudessem proporcionar os estímulos do ambiente. E segundo porque o Claudinho Bambini ligara o rádio a pilhas, que trouxera, em volume suficientemente alto que dificultava o entendimento das palavras dos confinantes.
- Ouvi dizer que Geraldinho Chuchu, do gabinete do Jarbas, está interessado no projeto daquele circo do prefeito. - afirmou Edgar D. Nal, acendendo um cigarro. - Dizem também que o prefeito vai contratar um engenheiro para construir barcaças que farão passeios turísticos pelo rio Tupinambicas. Será verdade?
Como a praia artificial feita por Jarbas, na margem esquerda do rio, ficava próxima ao prédio que abrigava a prefeitura, puderam os banhistas ver o alcaide quando este chegava naquela tarde, para o trabalho.
Bambini disse:
- Veja lá o homem das licitações. Ele vasculha tudo, remexe a papelada antiga, mas não se importa quando fazem o mesmo com ele. O mundo inteiro sabe que esse prefeito é brejeiro e que acoberta maganões. Ele usa a seita maligna do pavão-louco para conseguir seus objetivos. Mas já não está tão eficiente assim.
- Bambini, ô Bambini, vê se tem um pouco de cajibrina pra mim. Imagine só, com esse calor quem é que aguenta ficar sem tomar cerveja. - clamara, de repente, Mariel zonzo de tanta cana.
Mariel Pentelini que até aquele momento não se manifestara, mantendo um silêncio tumular, levantou-se e caminhando até a margem do rio, puxou de lá um cordel que tinha amarrado na ponta, um recipiente de tela metálica, dentro do qual havia dezenas de latas de cerveja.
- Não desperdice bebida assim. Nós vamos ficar até mais tarde. - esbravejou Aquino Pires, o funileiro que vendera a oficina depois que a polícia o flagrou adulterando vários chassis de carros furtados.
Van Grogue sabia que aquela turma vadia e ameaçadora só podia estar na praia àquela hora, por isso passou devagar com seu carro, observando de longe, o grupamento de desocupados.
- Não é à toa que a maioria desses panacas vive à custa das pensões do INSS. Bando de vagabundos. É o dia inteiro assim: passam o tempo bebendo e dizendo insanidades. Como é que pode um país progredir com gente desse tipo? Olha lá, tem até um caubóiola no meio da súcia.
Bambini e sua quadrilha também desejavam que Grogue sumisse da cidade. Quem mais se interessava por isso era Jarbas, o energúmeno, que deixaria de ter seu eleitorado exposto aos fatos contidos nos processos criminais, que apuravam os crimes por ele cometidos, e proclamados aos quatro ventos, pelo imbatível Van de Oliveira Grogue.
- Eu não contradito quem afirma existir lugares bem melhores pra se morar do que aqui em Tupinambicas das Linhas. – Disse convicto Allan Bança ao se aproximar da mesa onde Van Grogue solitário, degustava a sua primeira cerveja, naquela manhã de sábado.
- É claro que tem lugar muito melhor do que aqui. Só de estar longe do Jarbas, Tendes Trame e desse Fuinho Bigodudo já é uma glória inenarrável. – Respondeu Van de Oliveira, sorvendo um gole generoso da cerveja geladíssima.
- Dizem que a sensação de culpa no Tendes Trame, o deputado infiel, é tão intensa que ele faz agora uma nova terapia. – Informou lá de trás do balcão o Maçarico, abaixando o som do rádio.
- Ele consultava um doutor que lhe amenizava o remorso, causado pela cobiça, mas logo desistiu, por considerar o sujeito pior do que ele. – Completou Allan Bança, sentando-se à mesa e pedindo, com um gesto, uma cerveja igual a do Grogue.
- Ouvi falar que ele pratica agora a tal Micro Terapia. – Continuou Bança. – Ele descarrega suas neuras nos spans, correntes, piadas e pegadinhas, que manda pela internet. Às vezes ele tenta invadir e apagar os arquivos dos seus adversários. E o pior é que apaga mesmo. Deleta até blogs da oposição. O Tendes é fogo!
- Mas olha, já que você está falando da educação nessa cidade, deixe que lhe conte o que me aconteceu ontem, sexta-feira. – confidenciou Grogue ao amigo que já ingeria com prazer a bebida.
- Fala que nós te escutamos. – Incentivou com ironia o Maçarico, atendendo outro freguês que chegava.
Grogue não era livro de matemática, mas também estava cheio de problemas. E por pensarem ser ele incapaz de resolvê-los a contento, Lola Ola, Edgar D. Nal e Narcíseo, o louco, iniciaram uma campanha objetivando interná-lo na Clínica de Repouso do doutor Brady K. Ardia.
Uma das primeiras providências que tomaram foi convocar a seita maligna do pavão endoidecido, Charles Brochon, o Charles Bronson da Vila Dependência, Luisa Fernanda, a arruinada, e vovó Bim Latem, todos vizinhos do perseguido, numa reunião vespertina nas bordas da piscina de águas verdes da casa de Luísa Fernanda.
Constava dos planos a destruição do Grogue por meio da maledicência, calúnia e armadilhas; com a disseminação de panfletos espúrios planejavam lançar contra o Van a opinião pública da cidade.
Luisa Fernanda rascunhou numa folha apoiada nos joelhos, o texto do folheto a ser impresso, os seguintes dizeres:
“Grogue, o primeiro mestre Mundial das Forças Energéticas Constrói o inédito Centro Energético do Mundo.
1° Mestre das forças Emergentes Mundiais. Criador do 1º campo energético mundial em Tupinambicas das Linhas. Cidadão de importância na sociedade Tupinambiquence, no campo energético.
Caminha 12 horas diárias na captação de Energia Cósmica, Piramidal, Extra Terrestre, Magnética e solar.
Grogue, dono de um dos maiores Q.I. do Brasil: 0,0053 e possuidor de uma forte Áurea, elevando o nome de Tupinambicas das Linhas a nível mundial no Campo Energético.
Brevemente, Grogue estará no programa do Ratinho, para comprovar todas as suas forças.
Não existe imitações em matéria científica.
Não existe montagem.
Grogue querido da alta sociedade Tupinambiquence.”
Depois de rascunhado, o documento foi posto à apreciação dos demais integrantes da comissão de submissão da seita maligna do pavão louco dos infernos.
Narcíseo foi contra o texto dizendo haver nele muitas incorreções; mas a vovó Bim Latem, do alto da experiência dos seus setenta anos e, mais de cinquenta só de aposentadoria no serviço público, ponderou haver naquela manifestação de contrariedade, o fato de Narcíseo achar feio tudo o que não fosse espelho e, por isso mesmo desconsiderou sua fala, autorizando a impressão imediata do volante.
Vencida a primeira etapa Lola Ola disse que ensinaria uma simpatia para acabar com o Grogue. Era assim:
Todos deveriam pegar um cofrinho onde se guarda moedas e colocar ao lado dele uma figa que tivesse o polegar proeminente.
Ninguém entendeu muito bem o significado, mas Lola garantiu que a simpatia chamada “o dedão no cofrinho” visava quebrantar o Grogue, aquele xarope mais odiado de Tupinambicas das Linhas.
Charles Brochon, depois de dominar aquela sua tosse tabágica, disse:
- “Nói” vai “cabá” com ele. Já mandei “acertá” as lata dele. “Nói” vai “enchê” o rabo dele com tinta spray. Ô nego lazarento!
Luisa Fernanda pigarreando disse com autoridade, percebendo que seu rosto afogueou-se:
- Já mandei o “Nata cu de burro” injetar vírus no computador velho do folgado. Se aquela coisa já era lerda agora vai ficar pior. E todos os arquivos serão apagados. Essa gente não conhece o poder da seita maligna do pavão.
Todos aplaudiram as manifestações de ódio contra o Van Grogue.
Para finalizar a vovó Bim Latem coçando a xereca disse:
- É independência ou pancada! Não tem mais contemporização. Esse homem quase derrubou o governo do Jarbas. Será o Benedito?
E assim, sob a indignação geral, naquele final de tarde, a vovó Bim Latem deu por encerrada a primeira reunião da comissão de submissão da seita maligna do pavão-muito-bem-louco.
Grogue que pusesse as barbas de molho.
03/09/2007.
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