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Engatinhando pela calçada

por Fernando Zocca, em 12.10.15

 

Vira e mexe a gente se depara com as notícias de que encontraram um bebê abandonado.
Então nos locais mais bizarros não é incomum acharem recém-nascidos deixados ali pelo medo.
Embalados nas caixas de sapatos, sacos plásticos ou somente envoltos em alguns panos sujos, jogados nas lixeiras, cemitérios, lagoas ou soleiras das portas, os frutos dos relacionamentos condenáveis, podem jazer ali por longos períodos de tempo.
Geralmente é desse jeito que os filhos naturais (de pais solteiros), ou adulterinos (quando um dos pais é casado com outra pessoa), cujas presenças atrairiam enorme avalanche de acusações, começam a vida.
Alguma sorte os acompanham quando não encontram a morte nas bacias das privadas, ou são devorados pelos animais nas matas.
Imagine a pressão sofrida pelo pai da adolescente que, tendo engravidado de um sujeito da vizinhança, não consegue mais encontrá-lo, a fim de providenciar a reparação com o casamento.
Acrescente aos sofrimentos dos pais da mocinha grávida, os fatos de morarem sob a moral provinciana do interior de São Paulo, em meados de 1960.
E se os avós, daquele neto inesperado, dependessem da opinião pública favorável, por tirarem o seu sustento do comércio de medicamentos duma farmácia, as chances da tal fonte de subsistência mirrarem, aumentariam imensamente.
Mas a criança indesejada, que apareceu assim, sem querer, conseguindo sobreviver à tentação do abandono, vivendo agora com a mãe e os avós maternos, pode não receber as atenções necessárias para o desenvolvimento natural e saudável.
Então seria frustrante para a família contrariada, com a presença daquele ser pequenino, ainda envolto em fraldas, de aproximadamente dois anos que, engatinhando pela calçada, fosse parar atrás da roda traseira direita de um caminhão basculante, estacionado defronte ao bar vizinho, não morresse esmagada.
É claro que o desgosto do vexame, causado pela presença da criatura inesperada, se voltaria contra aqueles que, ao verem o motorista ligar o caminhão, alertaram-no, avisando que atrás do seu veículo, havia um neném.
Àqueles que considerariam ser inegável o amor dos avós maternos e da mãe natural ao pequenino ser, restaria atribuir ao pai da criança, ou aos seus familiares, o desejo do desaparecimento dele. Só assim se livrariam da obrigação de ajudar no sustento.
Então o desespero e o ódio, causados pelo reconhecimento e obrigação inescapável, de trabalhar para sustentar o filho, se voltariam - na forma de perseguições e armadilhas - contra os que teriam impedido o caminhão de iniciar o seu movimento fatal.
Mesmo sendo um deles o menino que, no grupo escolar, começava aprender a ler e a escrever.

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publicado às 15:22

Rasgando duplicatas e promissórias

por Fernando Zocca, em 21.06.13


Na sala de aulas lotada com alunos de sete anos.
Zezinho levanta o dedinho indicador, da mão direita, e pergunta para a professora, que escrevia na lousa, o texto que copiava de um livro.
Zezinho: Dona, existe o verbo miar?
Professora: (arregalando os olhos azuis, fitando-o por cima dos óculos) Imagina, menino. Quem mia é gato. Que arte é essa? Já pensou em conjugar o verbo miar?
Zezinho: É verdade que a vaca muge? 
Professora (irritada) É verdade. Mas a nossa aula de hoje não é sobre girolanda ou gatos e seus miados. Mas sim de matemática. Presta atenção.
Zezinho: (levantando-se e com o caderno na mão) Dona, quanto é 1 + 7 + 5 + 4?
Professora: (irritadíssima) Cala essa boca menino. Olha que eu mando esse apagador na sua cabeça. 
Zezinho: (sentando-se) E depois a senhora manda tirar um raio-x da minha moleira?
A professora desiste de falar com o menino. Ela volta-se e continua escrevendo a tabuada do 2 no quadro negro.
Zezinho: A senhora tem um fusca?
A mestra coça a cabeça; ajeita os cabelos brancos e os óculos sobre o nariz, mas não responde.
Zezinho: Meu pai comprou um fusca branco. Veio lá de Natal, no Rio Grande do Norte. A senhora já andou de fusca? Minha mãe disse que custou só R$ 1.990. A senhora acredita?
A professora nervosíssima, coloca o livro sobre a mesa, o giz no quadro negro e sai da sala. Quando volta vem acompanhada pelo inspetor. Todos os demais alunos iniciam uma conversa que se generaliza. Burburinho.
Professora: (apontando o Zezinho) É aquele ali.
Inspetor: Vem pra cá moleque. 
Zezinho levanta-se e, com bastante medo, caminha em direção ao funcionário.
Zezinho: (olhando, de baixo para cima, o rosto do homem) O senhor vai morder o meu pescoço que nem o morcego; que nem o Drácula?
Professora: (dirigindo-se ao inspetor) O que é que eu faço com este menino?
Inspetor: Deixa comigo.
O funcionário e o menino saem. Na sala da inspetoria o homem manda o garoto sentar-se na cadeira postada defronte a sua mesa.
Inspetor: O que é que está "pegando", garotinho?
Zezinho: E eu sei lá? É verdade que o Batman é um morcegão dentuço?
Inspetor: Você não para quieto. Vou falar pra sua mãe te levar pra médica. Conhece a Rita?
Zezinho: Que Rita?
Zelador: A Rita Linna. Conhece?
Zezinho: Não. Eu conheço o Billy Rubina e um amigo do meu pai que chama Silly Kone.
Inspetor: (irritado) Olha, vou chamar a sua mãe e pedir que ela, no mínimo, te leve a um psicólogo. 
Zezinho: Minha mãe já me levou, mas ele não quis mais me ver; disse que ficou muito atrapalhado comigo. O senhor é maestro?
Zelador: Que mané maestro, moleque?
Zezinho: Maestro é o que rege a orquestra. O regente. Já ouviu falar?
Inspetor: (carimbando as cadernetas dos alunos) Não tenho nada com maestros, regentes. Fique quietinho. Já vai dar o sinal do fim das aulas. Você já vai embora.
Zezinho: O senhor já andou de ônibus?
Zelador: É claro. 
Zezinho: Minha mãe falou que pegou um ônibus e tinha um morcêgo tipo Drácula lá dentro. O  senhor acredita?
Inspetor: Hã-hã. 
Zezinho: Então... Ela falou que a manicure, que estava com ela, disse que o morcego só andava de ônibus. E que o motorista bateu nele com uma vara de bambu. Sabe aquelas varas de pescar mandi?
Entra uma faxineira varrendo o chão. Passa a vassoura sobre os pés do menino, que se levanta rapidamente. A mulher vê uma moeda de R$1 no chão, abaixa-se, pega-a, certifica-se que os demais não notaram e a guarda no bolso.
Faxineira: (olhando para o forro) Ganhei do meu vizinho.
Zezinho: (apontando a mulher) Ela é uma bruxa? É verdade que o Jonas ficou três dias na barriga da baleia? O senhor conhece o Jonas? É verdade que o Jonas é um ladrão e que por isso fugiu e depois  disse pra mulher que a baleia tinha engolido ele?
A faxineira sai da sala. 
Zezinho: Minha mãe falou que o diretor da escola rasga notas promissórias e duplicatas.
Inspetor: Olha deu o tempo. Terminou. Por hoje chega. Vai. Volta para a tua classe, que já deve estar vazia, pega as tuas coisas e vai para casa.
O menino caminha em direção à porta mas para e volta.
Zezinho: Qual é a diferença entre 100, cem e sem? 
Inspetor: (muito irritado) E eu sei lá moleque?
A professora entra na sala.
Professora: (bem calma; passa a mão na cabeça do menino) E aí garotinho, melhorou? Toma tuas coisas.
Zezinho: (saindo) Melhorei. Meu tio Richard vem me buscar. Conhece o tio Richard?
Inspetor: (desolado e choroso) Minha Nossa Senhora. Que maldade eu fiz pra merecer este castigo?
Professora: Não é brinquedo não. Te cuida linguarudo.
Desce o pano.

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publicado às 12:39