Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]



Embrulhando o peixe

por Fernando Zocca, em 30.12.15

garoupa.jpg

 

Até parece que o cidadão de bem, frequentemente atacado na rua, por cão vadio, vai deixar de se defender por causa da lei de proteção aos animais.
E se há pessoa que prefira dar razão ao cachorro, ao invés de ao humano, injustamente sempre atacado, então seria melhor reciclar sua escala de valores, ou providenciar que aconteça o mesmo com ele.
A gente percebe que nesse tempo de chuvas quase que diárias as ruas estão sempre precisas de limpeza. E aqueles que têm árvores defronte suas casas em muito ajudariam ao poder público se providenciassem a varrição das folhas secas.
Por falar em folha lembrei-me do Jornal Folha de S. Paulo. Outro dia, depois da corrida diária, que faço na área de lazer do Piracicamirim, encontrei-me com um cidadão residente no local, que descansava num dos bancos ali existentes.
Depois de eu ter tomado a ducha super gelada, já bem seco e vestido, ao passar por ele, o cidadão puxou prosa.
E você sabe: o assunto predominante nestes dias é a sacanagem dos políticos.
O pacato e aposentado eleitor me dizia ter perdido a fé nessa gente que pede voto, e depois que é eleita, começa a roubar descaradamente prejudicando até mesmo as pessoas que votaram nela.
Então eu confirmei essa noção do meu colega dizendo que lia sempre as notícias na Folha de S. Paulo, um jornal até agora conceituado, que comunicava os fatos de corrupção.
Para o meu espanto o experiente e conceituado sexagenário, há algum tempo aposentado, garantiu que existia jornal que não servia nem mesmo pra ser usado como papel higiênico ou embrulhar peixe por tão nociva ser aquela sua consistência nojenta.
Não querendo polemizar, mas antes de tudo concorde com as opiniões do conceituado morador da cidade, disse-lhe que se o judiciário não conseguisse punir os safados, que drenam os recursos públicos, para as suas próprias contas particulares, essas instituições políticas estariam seriamente desacreditadas e consequentemente desnecessárias.
Concordes nesses aspectos e, em vista das nuvens ameaçadoras, que se formavam naquele momento, nos ajustamos também sobre as ações da natureza: em alguns lugares há chuvas em abundância, enquanto que em outros falta. E não é violando normas que as ações do tempo enriquecem uns minguando outros.
– Uma coisa é bem certa – garantiu-me o eletricista aposentado – hoje em dia você não precisa de jornal nem pra embrulhar peixe. A gente compra enlatado.

 

Colabore com a manutenção do Blog depositando sua doação na conta 0014675-0 Agência 3008. Caixa Econômica Federal.

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 11:30

As mãos limpas

por Fernando Zocca, em 09.09.14

 

 

Gafe é aquele "fora" cometido quando o sujeito, ou todos os demais presentes, esperam uma determinada verbalização, mas se expressa outra, involuntária e inesperada. 

Os psicanalistas denominam o fenômeno como "ato falho", explicando que a exteriorização deste, representa a verdadeira expressão da verdade, muita vez oculta por censura.

É o caso, por exemplo, daquele professor que, instado a manifestar-se na sala de reuniões, depois de ter chegado atrasado, começa-a "pulando" grande parte do ritual. 

Na verdade o "mestre" estaria dizendo: "vamos logo com essa situação, que não aguento mais tanta chatice". São os atrasos e os encurtamentos do tempo das reuniões as sinalizações de que ele, o "comandante", gostaria mesmo é de estar fazendo outra coisa em outro lugar.

Talvez o pescar num rancho distante, bebendo pinga, e folheando revistas dirigidas ao público masculino fossem mais acalentadores.

É inegável que essa inadaptação forja a falsidade num grupo. Por exemplo: quando o professor, ou o dirigente da reunião, fala de um dos presentes, aos demais, nomeando-o diversamente, sinaliza que o dirigir-se diretamente à pessoa presente ou falar dela, de forma clara e aberta, não convém aos objetivos da manutenção do engodo. 

A propósito, já escrevi sobre esse assunto e você pode se inteirar lendo REVELANDO SEGREDOS.

Situação semelhante é a do ator que esquece o texto, ou expressa fala diversa da que deveria dizer. 

O estresse, as dores, o desconforto produzem também esse tipo de situação que pode tensionar o restante do grupo.

Perceba que todos esses fatores, o cansaço, a tensão e a ansiedade podem influir decisivamente no sucesso ou fracasso de um primeiro encontro entre duas individualidades.  

A expressão verbal, o tom de voz, e a postura corporal, de uma delas ou de ambas, podem fazer lembrar pessoas ou situações angustiantes, do passado remoto, esmorecendo assim os ânimos.   

Na minha opinião não pode haver nada mais integrador do que as mãos limpas, o coração puro, as conversas constantes e amistosas. 

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 21:12

A cobra verde

por Fernando Zocca, em 11.08.14

 

As crianças das cidades litorâneas brincam mais nas praias sentindo os ventos vindos do mar, pisando na areia, bebendo água de côco e fartando-se com as brincadeiras possíveis no ambiente.

Já as crianças do interior relacionam-se com as coisas existentes no mundo ao redor. Por exemplo: aqui em Piracicaba, no início da década dos anos de 1960, além de quadrar a Praça José Bonifácio, assistir aos filmes dos cines Politeama, Palácio, Broadway, Colonial ou Paulistinha, ouvir os programas de rádio, pouca diversão a mais havia. 

A não ser, é claro, para aqueles cujos pais eram proprietários, ou tinham amigos que possuíssem ranchos de pescaria. Aí sim a diversão estaria mais do que completa.  

Contudo, no rancho a pessoa tem de aprender a se virar sozinha. Deve preparar - na ausência do encarregado que o faça - as próprias refeições, lavar a louça, higienizar o ambiente e, para os que ficam mais tempo, lavar as roupas.

Mas aos adolescentes que, num domingo, ficassem nesses locais de lazer, na companhia dos pais, dos tios ou dos avós, os trabalhos - é claro - não seriam tão obrigatórios. 

Entretanto, adolescente, sem ter o que fazer, - você sabe - logo busca alternativa pra não ficar parado.    

Foi o que aconteceu numa tarde de domingo, há muito e muito tempo atrás. Reunidos na bela construção, à beira do rio Piracicaba, logo depois da foz do Corumbataí, os pais, os avós e os tios de três adolescentes, procuravam passar as horas prazerosas cada um a sua maneira.

Enquanto os casais dormiam nos seus quartos, e os avós conversavam na varanda, os moleques tomando o bote, equipado com um poderoso motor de popa Mercury, saíram velozes rio acima, explorando as novidades. 

Nesses dias de seca incomum, na opinião de alguns, o rio Piracicaba não passa de um escoadouro de água impura, mas durante o tempo das chuvas o rio avoluma, e suas águas ficam bem perigosas. 

A correnteza é bastante forte e, mesmo para os melhores nadadores, não é fácil permanecer confortável, por muito tempo sobre ela. 

Naquela ocasião estavam os três garotos num bote velocíssimo navegando sobre as águas barrentas, contra a corrente, quando ao se aproximarem das estruturas da ponte do Caixão - que naquela época estava sendo construída - avistaram umas manilhas de concreto postadas ao longo das margens. Algumas estavam ilhadas. 

Fazendo uma curva fechadíssima para a direita, o piloto comandou a embarcação para o tubo cinzento ali jacente.

Reduzindo sensivelmente a aceleração do motor, deixando o bote deslizar calmamente, o piloto mandou aquele que estava mais próximo da proa tocar na manilha, suavizando, desta forma, o contato do barco com o objeto.

Dois garotos subiram na manilha. Ao olharem para dentro dela avistaram uma pimenteira vicejante ao lado de uma vara bem grossa que, tocando o fundo úmido, permanecia com a outra ponta, encostada numa das paredes internas. 

Isso tudo não teria nada de excepcional se não fosse por um detalhe inesperado: é que, enroscada na vara, havia uma cobra verde aparentemente dormitando. 

A partir daquele momento então a prioridade dos garotos era a de pegar a tal cobra. Mas como fazer isso? Um deles sugeriu que puxando devagar o pau, que há tempos estava ali, traria com ele, a cobra preguiçosa. 

E não deu outra. Devagarinho, o mais taludo foi tirando o bordão e, com muita delicadeza, pegou a cobra verde pelo pescoço.

A primeira frase que se ouviu depois da captura foi: 

- Vamos levar para o vovô!!

O bote, zunindo, agora a favor da corrente, chegou rapidinho ao rancho onde o pessoal estava ou tocando violão, ou dormindo na rede ou jogando conversa fora. 

A cobrinha foi apresentada ao vovô que, notando estar ela morta, devido à pressão exercida sobre o seu gorgomilo, mandou que alguém lhe trouxesse uma tesoura. 

Com a posse do instrumento o avô mostrou aos moleques que ela tinha alguma coisa na barriga. Devia ser a refeição que fizera há algum tempo. 

Usando muita delicadeza o vovozinho abriu o ventre da cobrinha verde, donde saiu um pequeno sapo já metabolizado.

Naquele bucólico final de tarde, junto com os oprimidos que sempre se queixam dizendo "pimenta no olho alheio é refresco", não tiveram também muita sorte, nem o sapinho, e nem a cobrinha verde.  

 

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 03:47

O Cavaleiro das Trevas

por Fernando Zocca, em 25.07.14

 

 

Quase todos sabem que a vida sedentária, isto é, aquela em que a pessoa fica muito tempo sentada ou parada, não faz bem para a saúde.

As consequências para aqueles que não se mexem são bastante desagradáveis. Uma delas é a obesidade. Depois disso, a pressão alta, o diabetes, os riscos maiores de infartos e os derrames cerebrais estarão sempre presentes. 

Sabedor disso eu vou, pelos menos quatro vezes por semana, até a área de lazer do Piracicamirim, onde corro durante uma hora. 

Não é uma corrida desabalada vista comumente nos campos de futebol. Os entendidos no assunto denominam o estilo de "trote"; seu ritmo é mais rápido do que o passo comum e mais lento comparado com o chamado galope.

Depois do exercício geralmente eu me sento num daqueles bancos até baixar a temperatura e o ritmo cardíaco voltar ao normal. 

Numa destas ocasiões sentou-se ao meu lado um cidadão magro, de estatura mediana; ele tinha os cabelos já embranquecidos, usava óculos de grau, vestia camisa de mangas longas  donde tirou um maço de cigarros, sacou um deles e acendeu-o com o isqueiro, que buscou no bolso da calça social cinza. 

Depois da baforada, que soltou sobre a minha cabeça suada, ele me perguntou:

- Vejo sempre você correndo por aqui. Como faz isso?

Eu lhe expliquei que antes de correr é preciso reaprender a caminhar. Para os que estão acostumados a locomover-se sentados, nos sofás dos carros, é bom começar fazendo trajetos curtos. Depois então é que se iniciam as corridas.

- Você é de Piracicaba? - ele me perguntou.

- Sou sim - respondi-lhe - moro aqui há mais de 60 anos.

- Eu também sou nascido e criado nesta terra. Sou funcionário afastado da prefeitura por causa do nervo ciático - contou ele soltando outra baforada para o meu lado,  -  mas no meu tempo de moleque não tinha esse tipo de diversão, essas áreas de lazer. A gente ia quase sempre para os ranchos de pescaria.

Eu então me lembrei de que há muito e muito tempo frequentava, de vez em quando, o rancho de pescaria de uns amigos. 

- Quando criança - continuou o funcionário - depois que meu pai se desentendeu com os irmãos dele a gente foi morar numa casa bem simples que estava desocupada. Meu pai colocou forro, soalho e fez outras reformas. Os parentes dele diziam que ele era o Batman, sabe o Batman, o cavaleiro das trevas? Falavam assim porque, segundo eles, meu pai, quando brigava, batia muito. Ele era o Batman e eu o Robin. Sabe aqueles dos gibis?

- É claro que sei. Eu colecionava gibis e trocava os repetidos, antes do início das sessões da tarde, nos cinemas naquela época. 

- Então, numa ocasião - continuou o meu mais recente confidente - um dos meus tios me convidou para passear de caminhão. Ele me disse que eu deveria ir na carroceria, que era de madeira. Eu tinha, acho que uns 10 ou 11 anos. Logo que subi na carroceria onde ia de pé e sozinho, vi um pano acetinado preto, jogado num dos cantos. Era uma espécie de capa. Sabe aquela do Robin?

- Sim sei.

- Então... Coloquei ela na costa e amarrei as duas pontas no pescoço. Ela tremulava com o movimento do caminhão. Ficava até bacana. Quando passamos perto da Rua do Porto, onde havia um grupo de pessoas, algumas delas gritaram "ei, mascarado!!!"; isso me deixou bem, mas bem chateado mesmo.

Eu percebi, naquele momento que o cigarro do meu interlocutor já havia chegado ao limite, quando então ele acendeu outro e continuou:

- Depois que a gente mudou para aquela casa que foi reformada por meu pai, logo em seguida uma outra família veio morar na vizinhança. O casal tinha quatro filhos. Três meninas e um menino. Eram todos ainda muito crianças. Mas fizemos amizade e eu ia mais na casa deles do que eles vinham na minha. Numa tarde, não sei porque (acho que por excitação, sabe... Tesão mesmo?) eu convidei uma delas pra brincar de médico. Ela ficou na dúvida. Então eu expliquei que ela seria a paciente e eu o doutor que a examinaria. Ela teria que tirar a roupa; só assim a brincadeira daria certo. A menina ao invés de me dar uma resposta foi consultar a irmã mais nova. Esta, por sua vez, resolveu perguntar para a mais velha. Se ela permitisse, ai sim, então a gente brincaria.

Eu estapeava os mosquitos quando então o funcionário afastado, por causa do ciático inflamado, continuou:

- A irmã mais velha, olhando-me de cima pra baixo, bem desconfiada e com certa zanga, chamou todo mundo e atraindo-nos para defronte a escada que ficava bem na frente do quarto de dormir dos pais dela, sentar-se num dos degraus e, com ar sério de autoridade, ouvir minhas explicações, sobre a brincadeira, disse que não permitiria que isso acontecesse. Mas de jeito nenhum. Eu fiquei muito chocado, contrariado, com cara de tacho. Bom, passou bastante tempo, até que recebi na minha casa a visita do meu coleguinha, irmão das meninas. Ele me convidava pra ir ao rancho de pescarias junto com o pai dele. A gente tinha que sair bem cedo. E foi isso mesmo o que aconteceu. Não me lembro se fomos de ônibus. Mas acho que percorremos uma parte de ônibus e outra, nós fizemos a pé. Quando chegamos lá e quando o paizão abriu a porta do digamos, barraco, o odor era muito desagradável. Ele então abriu as janelas e o clima melhorou. Bom, quando a noitinha vinha chegando ele resolveu fazer a janta. Para isso deveria lavar alguns objetos. Sabe aquela tralha de cozinha? Ele pegou uma frigideira, que continha resíduos de óleo e peixes, chamando-me até a escada que ficava na margem do rio, e sentando-se num dos degraus, pôs-se a, ostensivamente, esfregar limão no recipiente. Logo depois pegando areia do barranco passou a arear a frigideira. Sabe, foi a ênfase que ele pôs nos gestos que me deixou com a pulga atrás da orelha. Quando a noite chegou, o paizão chamou-nos, eu e o filho dele, pra frente da porta que dava pro terreiro pelo qual se devia passar pra chegar às margens do rio. Havia ali um bambuzal. Ele pegou uma vara grande, fina, bem comprida, e a sacudindo com força, fez com que os morcegos, que voavam por ali, se chocassem contra ela. Um dos morcegos, filhotinho ainda, caiu aos nossos pés. Ele então pegou, pela ponta da asa, o bichinho morto e mostrando-nos disse: "Está vendo como é?" Você sabe, eu sou bem retardado, demoro muito para entender as coisas, pra ligar lé com lé, cré com cré. Entende? Eu não imaginava o que o pai fera estava querendo dizer com aquilo tudo. Naquela noite, depois de tomar um café super forte, acho que coado na cueca do meu coleguinha, não dormi até o dia seguinte. Não sei, não tenho certeza, mas acho que foi naquela madrugada que começaram as minhas dores de cabeça e a insônia crônicas. 

- Mas agora você conseguiu sarar da insônia? Está curado disso? - perguntei me preparando para voltar para casa.

- É claro que hoje eu durmo normalmente. Não sofro mais por causa disso. Agora o que me incomoda é esse nervo ciático que não me dá trégua.

- Um dia, quem sabe, quando você sarar, poderá andar bem e até correr assim com eu faço hoje - disse-lhe.

- É verdade amigo. Tenho que parar como cigarro e a pinga. Não parece, mas é a "marvada" que me atrapalha - revelou ele. 

Cansado mas satisfeito, levantei-me e despedindo-me do meu mais novo colega, contador de histórias, fui direto para casa, onde um banho bem quentinho me aguardava.

 

 

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 03:07

A Tampa Vermelha

por Fernando Zocca, em 12.08.11

 

Deitado na rede, fixada na varanda, do rancho velho de pescarias, eu matutava, naquela manhã ensolarada de sábado, que: "apesar da empresa afirmar ter ampla oferta de benefícios aos clientes, suas limitações eram gritantes. Os fantasmas das 104 mortes, provocadas pelo enfermeiro, sócio tácito do pool das funerárias, rondavam insidiosos, a instituição".

No rancho, onde nos finais de semana, eu recebia os amigos, a sombra, água fresca, música boa, comida farta e saborosa, bem como o descompromisso com a seriedade, eram os elementos dominantes. No fogão velho encostado na parede sombria, Dentola cozinhava em fogo brando, naquele instante, o arroz e feijão; os peixes eram limpos, lá na beira do rio, pelo encarregado da tarefa.

Eu me achava tranquilo. Mas minha vida não tinha sido fácil até alguns anos antes. Acordava cedo e trabalhava muito; engolia sapos terríveis dos chefes pernósticos e inclementes; mal-e-mal conseguia pagar as contas de água e luz.

Essa fase, porém, foi substituída, por diversa, mais próspera e promitente. Eu comprara uma casa no valor de R$ 500.000,00 entranhada num condomínio restrito.

Apesar de ela situar-se noutro município, era mansão e tinha sete quartos. As más línguas, como sempre, não tardaram em asseverar que era a "Mansão das Sete Mulheres", numa alusão travessa, às minhas namoradas eventuais. Comprei também três carros bons e deixei definitivamente a dependência dos ônibus e seus horários.

O fato causador dessa mudança, verdadeira ascensão social, foi a minha elevação, de reles funcionário, simples e obsequioso, oriundo da mundiça catinguenta, à categoria de Comandante em Chefe do Departamento Comissional do honorável Sindicato Motorístico da Metrópole.

Mas você, meu astuto e criterioso leitor, sabe como é a inveja: basta verem que "neguinho ta subindo na vida" pra logo inventarem um monte de besteiras irrazoáveis. No meu caso disseram, aos quatro ventos, que as propriedades que possuo são incompatíveis com os meus vencimentos. Ora, veja!

E depois tem mais: não considero, e nem mesmo nunca considerei, as ajudas de custo que variavam entre R$2.600,00 a R$6.500,00 propinas tipo fecha beiço. Os tais teclados pérfidos eram terríveis; ainda mais quando afirmavam ser nossa diretoria seleta, subserviente à classe patronal. Eu pensava: "Eles mentem. O inimigo trama. Mas mesmo que ele trame tanto, que torne minha vida ao inferno, eu lutarei em defesa das minhas propriedades genuínas. Eles nunca provarão serem elas frutos das peitas malignas. Essa onda de maranhão só pode ser coisa de quem tem berebas no cérebro; de malucos".

Portanto afastei, naquele momento, os tais pensamentos ruins e voltei minha atenção para a beleza vitaminada que preenchia o minúsculo biquíni harmonioso estendido ali, sob o sol, no gramado circundante. Aqueles lábios carnudos, cabelos longos, densos e louros; olhos azuis e a peitama abundante, eram sim motivos bons e reais pra concentração prazerosa. Ela detinha nos dedos finos, da mão esquerda, uma tampinha vermelha com a qual brincava lascivamente.

Dentola que não me visse; mas ela emitia olhares furtivos, por sobre os óculos de sol, mordia o lábio inferior, premendo as coxas. Ela queria; precisava.

Olhei pela janela envidraçada e o mocorongo continuava nos afazeres do fogão. Gritei então pra que ele ouvisse: - Dentola! Nós vamos apanhar laranjas.

Com um gesto sutil de cabeça pedi pra que ela me acompanhasse. Cúmplices, tensos e vibrantes nos embrenhamos no meio da mataria. Isso sim é que era um vidão.

09/05/2003.

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 20:25






subscrever feeds